quarta-feira, 24 de março de 2010

Sonho, imaginação, ludicidade, caminhos, artista...


“Ouçam a imagem lacrimosa !
Ouçam o ardor suarento!
Ouçam um perfume de sonho e de pó!”

( Roberto de Abreu)



Fico me perguntando porque ir ao teatro, fazer o quê no teatro? Ou porque atuar, porque permitir que muitos olhos desvendem os mistérios de uma encenação? Não pense que irei responder essas perguntas diretamente, o que farei é apenas expôr um olhar sobre um aspecto da peça Gennesius – Histriônica Epopéia de um Martírio em Flor. Gostaria que você, meu caro leitor, tentasse responder, por meio das palavras por mim explicitadas nesse texto, as perguntas feitas anteriormente.

Foram alguns caminhos percorrido pelo meu olhar que pairou sobre a configuração de um caminhar teatral das formas estéticas, concretas, herméticas construídas pela direção. Sem ordem de sensação fui guiada pelo som; pela luz; pela maquiagem; pelo cenário; pelo figurino; pela interpretação; pela música; pela alma do espetáculo.
Essas minhas elucubrações são resultados de uma apreciação sensível que o espetáculo me fez ter. Fui envolvida por tudo isso, me sentir parte da história, fazendo ela acontecer, e talvez tenha até feito. O espetáculo narra a história ficcional de Genésio, um artista nordestino do interior da Bahia que, ao longo de sua trajetória vive e acumula experiências artísticas.

É uma história cuidadosamente inspirada na tradição popular rural do sertão baiano, no universo circense e nas relações identidade travadas entre interior e capital. A história de Genésio é contada por três passagens: o sertão - onde nascera e deixou seu coração; o circo –onde descobriu as malícias da vida; e a cidade – onde a dor quase destruiu o sonho de ser artista.

Como os senhores podem notar os meus olhos não pararam e a minha imaginação ficou desenfreada. Fui brincante, palhaço de circo, acrobata e ator e isso só aconteceu porque a direção de Roberto de Abreu foi cuidadosamente lúdica, poética , fantástica e fiel aos sentimentos do artista. É um espetáculo feito para aqueles que desejam liberar o cavalo da imaginação, e o meu cavalo correu livremente durante as quase duas horas e meia de espetáculo, duração justificada pelo conteúdo teórico e artístico do espetáculo.

Penso então: o que pensava o diretor quando teve uma idéia tão primorosa, e com uma poética que deixa a alma acariciada e amortecida? A direção foi feliz em todos os aspectos do espetáculo, pois é como se ela, antes mesmo de chegar aonde chegou, tivesse feito isso experimentalmente em outra ocasião, pois durante toda peça nota-se que o diretor teve o cuidado em cada cena e não somente com o ator , mas principalmente com o espectador, porque fez com que espectador não fosse apenas um mero , mas sim seres inseridos diretamente na história, um outro protagonista.


Isso pode ser visto na cena em que Genésio se torna artista de circo e vai se apresentar, o público torna-se a platéia e ganha até uma pipoca para acompanhar as peripécias do circo, o que me levou a sentir parte da história, como se eu invisivelmente estivesse acompanhando todos os caminhos de Genésio. Outra coisa fascinante, que achei um cuidado do diretor, foi o fato dele ter pensado em preparar o ambiente da entrada, um corredor antes de chegar no espaço da apresentação, com símbolos que representava o ambiente rural nordestino.


Era um chapéu de palha, panela de barro, peneiras enfeitadas, burrinhos, tecidos, fitas... que preparavam a imaginação do espectador para o que iria ser visto e sentido. A própria disposição espacial de cada elemento foi feita com muito carinho, como se a distância entre um símbolo e outro fosse melimetricamente medida. Feito isso, a atmosfera lúdica e poética do espetáculo pôde ser construída minutos antes de entrarmos na sala da imaginação.


A história acontecia. Cada passo dos atores era um passo de desvendamento de uma incógnita, era uma surpresa. E uma dessas eram o corpo e a voz de Genésio, que em muitas vezes tomava outra forma, mas continuava com sua poética e leveza. Essas mudanças aconteciam quando os cincos atores transformavam-se em Genésio e a maneira que o diretor conseguiu fazer essa magia, foi primoroso e sutil, pois ele pensou nessa mudança sem agredir a nossa imaginação, sem ferir o nosso olhar e a poética dramatúrgica.


A excelente regência de Abreu pode ser percebida também na maneira como ele construiu a transposição espacial. As cenas aconteciam em espaço e tempo diferentes e a mudança acontecia no espaço e no deslocamento dos atores, junto com os outros elementos cênicos, que contribuíram para que a narrativa da história se tornasse ainda mais verdadeira.


Os locais que aconteciam as cenas eram determinadas apenas pela movimentação física dos atores ou, até mesmo, pela mudança de cenário e tudo isso dentro de um espaço, a sala de ensaio do Teatro Xisto, que não era tão grande, mas também não era pequena, e nada convencional. O diretor escolheu espaço que possibilitou com que o espetáculo acontecesse, era um espaço que tudo girava e nós, espectador, tivemos vários ângulos para vivenciar a história.


Todas as passagens de cena, foram feitas pelo diretor como uma costura de uma coxa de retalhos, porém, mesmo sendo fragmentos dos três momentos vividos por Genésio, a costura da coxa era leve e suave, sem nenhum tipo de relevo. Assim, a história de Genésio Almerinda da Gota Serena, foi contada e vivida com muito amor e dedicação do diretor com seus atores, do diretor com seu público, do diretor com ele mesmo, do diretor com os artistas, do diretor com...


Acredito que o padroeiro do Teatro - São Genésio – que socorre o teatro das causas quase perdidas, esteja em seu recôndito canto, encantado e satisfeito por ver que sua moradia , o teatro, está sendo bem guardado e muito bem cuidado. Ao senhor diretor Roberto de Abreu a benção já foi concedida!

Por Clara Paixão

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