quarta-feira, 24 de março de 2010

Alma e Almas


Imagine: você vai ao teatro, está preparado para assisti o espetáculo, fazendo parte de todo o ritual inicial que os espectadores fazem quando vão para o lugar onde se vê e se é visto, e de repente surge, no foyer do teatro, a atriz. Toda arrumada e com sua maquiagem e seu figurino impecável, gritando, aparentando estar muito chateada, falando que não vai fazer mais o espetáculo. Pede desculpas ao público, mas repete que realmente não irá se apresentar, porque está cansada desse encontro entre o ator e público. O que pensar? Como reagir? O Primeiro passo talvez seja pedir o dinheiro investido de volta, não é?

O choque está instalado na platéia, olhos procurando respostas... Em frações de segundo as expressões mudam da ansiedade e expectativas para as de indignações, dúvidas e interrogações. Está você louco ou louca? Não, o público não está louco. E nem tão pouco certo. É sim uma atriz cansada de ser sempre disponível para quem vai vê-la. A atriz sai de seu camarim, que para este espetáculo se localiza na administração do teatro, sobe as escadas e como uma suposta louca grita no meio da rua palavras que refletem suas inquietações e dúvidas entre fazer e não fazer o que normalmente se propõe “todas” as noites.

Casa da Minha Alma, este é o nome do espetáculo. Essa eloqüência citada acima é o início do monólogo que a atriz que desistiu de entrar em cena leva intinerantemente um grupo de espectadores para a casa de ensaios. Mostra também as inquietações e conflitos que existem na alma da atriz, questionando poeticamente a arte de atuar. E tudo acontece na casa que é Anexo do Theatro XVIII, a casa XIV, situada no Pelourinho, em uma ladeira levemente inclinada. O espetáculo é uma obra interpretada pela experiente atriz Rita Assemany; com o texto primoroso e envolvente de Aninha Franco; tem um toque especial do diretor Márcio Meirelles e uma extraordinária música e direção musical assinada por Jarbas Bittencourt.

Voltando ao espetáculo, a atriz depois de parar no foyer, se dirige a porta da Casa XIV, suas vestimentas e maquiagem remetem a uma personagem de ficção, algo mais que humano. Nesse momento além de contar para o público o motivo que a fez decidir a não entrar em cena, ela apresenta as portas e paredes que montam e constroem a casa de sua alma, a casa onde surgem seus diversos personagens.

E é aí que tudo começa a tomar forma para o espectador, as palavras ditas dão alma e vida as paredes e portas, o que acontece em todo o espetáculo. Tudo que seria inanimado, passa a ter mais cor e mais sentido, isto porque a atriz em cada palavra dita consegue passar essa sensação para os seus trinta espectadores, que debruçam os grandes olhos sobre ela. As palavras, assim como os objetos mechem-se e causa inquietações e questionamentos em nós como: por que fazer teatro? Fazer o quê no teatro? A intimidade, então, está estabelecida. O público está a poucos centímetros de distância da atriz e senti tudo junto com ela: cheiro, tensões, respirações...

E ela nos leva para passear pelos cômodos que deram vida as suas criações, e no meio do passeio há sempre as paradas que lançam os questionamentos, nos colocando para pensar sobre os sentidos das coisas, sentido do teatro. As luzes simples, que ora estão sobre nossas cabeças e ora estão a iluminar a interpretação emocionante e verdadeira de Rita, contribuem mais ainda para estabelecer a intimidade. As músicas tocam na alma, elas tornan-se a confissão da alma.

Vale ressaltar que o espetáculo não tem um texto que se entende imediatamente, já que é cheio de signos e precisam em alguns momentos de um conhecimento prévio. Um leigo de teatro, por exemplo, demorará um certo tempo para entender ou não entenderá no primeiro contato a peça. Talvez seja necessário assistir mais de duas vezes, porém o interessante é que ainda sim algo fica em que assiste, acontece uma magia com os espectadores e eles não saem mais os mesmos. Não se sai do espetáculo vazio, ao contrário, uma ebulição de sentimentos invade a alma, independente se a pessoa é ou não de alguma classe artística.

Ainda por cima depois de passar por portas, paredes, velas, degraus, labirintos, acervo, ribaltas, memórias, olhares, cortinas, espelhos... no final do espetáculo a atriz convida a sua platéia para um drink, em meio a luzes de velas, sobre um som envolvente do jazz e o vento que entra pela janela levantando suavemente a primeira cortina. É o encontro das almas, dos olhares, e dos porquês.

Esse momento ajuda a não quebrar todo sentimento construído durante a peça. Ele constrói uma calma no espírito, prepara a cama para repousar as emoções. O término não existe, pois, ao descer as escadas, ao sair pelas portas o espetáculo continua em nossa alma, porque as indagações feitas pela atriz como desabafo permitem ao espectador entrar em contato íntimo com o espaço de criação da artista e principalmente com o seu próprio espaço interno. Esse espetáculo é realmente um bom convite para “a casa da minha alma”.


Por Clara Paixão

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